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​Jovens guarani criam Núcleo Audiovisual em aldeia de Aracruz

Desesteriotipar e construir narrativas próprias da comunidade são objetivos do Reikwaapa, que significa ‘você sabia?’ 

“Durante muito tempo nossas histórias foram escritas e retratadas por pessoas que não pertenciam a nosso cotidiano, ao nosso povo, ao nosso modo de vida”, reflete Maynõ Cunha, de 24 anos. Ele é hoje o coordenador do Núcleo Audiovisual Indígena Reikwaapa, sediado na aldeia guarani Kaagwy Porã (Nova Esperança), em Aracruz, no litoral norte do Espírito Santo. “Acredito na importância de nossas histórias serem contadas por nós mesmos, porque nós sentimento na pele, temos propriedade para falar”, complementa a jovem liderança.

O projeto, que vem sendo construído por ele e outros nove jovens guarani no Espírito Santo, a maioria de moradores da mesma aldeia, tem a ver com um movimento crescente no Brasil nas últimas décadas, em que a partir do acesso a equipamentos e tecnologias, as comunidades de diferentes etnias tem produzido vídeos retratando suas realidades, visões de mundo, histórias e outros elementos de seu interesse.

Donizete e Lucas, integrantes do núcleo, orientando os atores e atrizes mirim. Foto: Junio da Silva Benite

“Quando você vai entrevistar um ancião guarani, pode ter um roteiro de perguntas pronto, mas ele vai falar sobre o que quer falar. Existe a prática do mongweta, o aconselhamento. Você chega para conversar com o ancião, e naquele dia ele pode ter tido um sonho, dormindo ou acordado. Então se ele recebe esse chamado, vai falar sobre isso, sente que tem que falar sobre isso”, conta o coordenador.

Para ele, isso é uma das coisas que torna diferente o cinema feito pelos próprios membros da comunidade, que convivem com esse modo de ser e com a espiritualidade de seu povo. “Se eu pedir para um não indígena criar perguntas sobre nosso povo, vão perguntar o que não sabem, mas o que nós provavelmente já sabemos. Então, quando vamos fazer um filme, nossas dúvidas são outras, o olhar é diferente. Esse é o diferencial”, analisa.

Palavra guarani, Reikwaapa significa “você sabia?” e remete um pouco do projeto dos primeiros vídeos e do núcleo criado que busca desesteriotipar a visão sobre os povos indígenas e mostrar o modo de vida guarani. “Muita gente acha que os povos indígenas são uma coisa só e não compreende toda diversidade que existe nas nossas formas de vida”, aponta Maynõ.

Bastidores das filmagens da websérie Reikwaapa. Foto: Divulgação

As origens do núcleo

No caso do novo núcleo audiovisual capixaba, as origens remontam há anos, quando foi realizado o curta-metragem Reikwaapa, em co-direção do cineasta Ricardo Sá com Marcelo Guarani (Werá Djekupé), uma importante liderança guarani, hoje cacique da aldeia Kaagwy Porã. O filme foi lançado em 2013, mostrando em vídeo alguns dos ritos de passagem dos guarani.

Quase dez anos depois, foi aprovado um projeto para uma websérie com novos capítulos da Reikwaapa, agora pensada com outro formato e com produção a partir dos jovens da nova aldeia, fundada em 2015, em área demarcada após o último ciclo de lutas pelas terras que haviam sido tomadas pela empresa Aracruz Celulose (hoje incorporada pela Suzano). Além de recursos para produzir, o núcleo conseguiu adquirir equipamentos eletrônicos para realizar todo processo desde a filmagem até a edição.

Foto: Divulgação

O nome da série de vídeos acabou adotado também para nomear o núcleo de produção, que teve patrocínio do edital de Cultura Digital, lançado pela Secretaria de Cultura do Espírito Santo (Secult) com recursos federais oriundos da Lei Aldir Blanc.

“Dentro da nossa equipe, temos pessoas com mais aptidão para filmagem, outros para edição, alguns para fotografia, áudio, roteiro. Mas no final, compomos tudo de uma maneira coletiva”, diz o coordenador do núcleo. Ricardo, como cineasta, e Marcelo, como cacique, seguem apoiando e acompanhando o processo, mas agora o protagonismo da produção é dos jovens.

Maynõ, que está prestes a terminar a graduação no Programa de Licenciatura Intercultural Indígena da Ufes (Prolind), teve oportunidade de participar de projetos audiovisuais quando tinha cerca de 13 anos e também de oficinas sobre animação e stop motion, mas só recentemente voltou a trabalhar com mais afinco na produção audiovisual, que é tema de seu interesse.

“Venho buscando fortalecer meu povo a partir da produção audiovisual, contando nossa própria história, registrando nossa memória, porque se tratando do meu povo guarani, nosso principal mecanismo de repasse do saber, do conhecimento e da língua é a oralidade. Então o audiovisual vem casando bem com nosso modo de vida”, explica.

O hiato que viveu na produção, Maynõ temeu que pudesse acontecer também com o Núcleo Reikwaapa e seus integrantes. Mas não foi o que ocorreu. Terminada a websérie, o coletivo encampou dois novos projetos: um deles foi a realização de um vídeo para a exposição Tempo Chuva Porã, que ocupa atualmente a Galeria Homero Massena, em Vitória. Nele, Werá Djekupé conta sobre a produção do pau de chuva, instrumento musical que é tema da intervenção artística que mistura ancestralidade e novas tecnologias.

O núcleo ainda produziu em dezembro um vídeo de registro do Encontro Nacional de Comunicadores Guarani, realizado no Paraná. Alguns integrantes do Reikwaapa fazem parte do grupo de comunicadores da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), o que tem facilitado a articulação e diálogos com outros núcleos de produção indígenas do Brasil. “Quando criamos as páginas do nosso núcleo no Facebook e Instagram, ficamos abismados com a quantidade de núcleos audiovisuais existentes. Assim vamos conversando e fazendo trocas, enviando fotos, tirando dúvidas, criando essas pontas”, conta Maynõ Cunha.

Depois da série de projetos, o grupo agora escreve um novo projeto para buscar recursos por meio do Fundo Estadual de Cultura (Funcultura), cujos editais são lançados anualmente pela Secult. Outra novidade já em curso é a construção de uma sala própria para sediar o núcleo e guardar todos equipamentos.

Embora o Núcleo Audiovisual Indígena Reikwaapa tenha como referência a aldeia Kaagwy Porã, ele é aberto para participação de pessoas de outras aldeias, embora haja certa dificuldade por conta dela estar localizada num ponto mais distante de outras. Mas a intenção do núcleo, segundo Maynõ, é também apoiar produções e formações de núcleos em outras localidades.

Bastidores de gravação do episódio Orema Roota, da websérie Reikwaapa. Foto: Divulgação

O coordenador considera que o povo guarani tem conseguido de certa maneira conviver com o que vem de fora preservando sua cultura, língua e forma de vida, sendo um dos poucos povos que foram contactados há mais de 500 que ainda conseguem manter certos aspectos culturais, já que o processo colonial foi violento e levou a perda de línguas, tradições e identidades. “Vejo que nesse caso o nosso povo vem se apropriando de maneira positiva. Até os mais velhos entendem a importância do registro audiovisual e fotográfico para nossa cultura”.

Relatos de alguns dos jovens do Reikwaapa ainda fazem parte do livro Ta’angaba, no qual a antropóloga Aline Moschen realiza diálogos com indígenas tupinikim e guarani que realizam trabalhos com fotografia e audiovisual.


Livro relata relação de povos indígenas com a fotografia

Em ‘Ta’angaba’, Aline Moschen dialoga com jovens Tupinikins e Guaranis do Estado sobre imagens e representações


https://www.seculodiario.com.br/cultura/livro-relata-relacao-de-povos-indigenas-com-a-fotografia


Fazendo cinema na aldeia

Cineasta autodidata, T-Kauê produz ficções e documentários em Aracruz com base na cultura de seu povo Tupinikim


https://www.seculodiario.com.br/cultura/fazendo-cinema-na-aldeia

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