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MPF denuncia no Tribunal Federal atuação de comissão apócrifa de atingidos no ES

Recurso em ação civil pública expõe atos esdrúxulos e pede a continuidade do pagamento de indenizações

Leonardo Sá

Uma polêmica iniciada em fevereiro em Baixo Guandu, noroeste do Estado, e que desde então se alastra para outras comunidades ao longo do Rio Doce no Espírito Santo, foi denunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF 1): a formação de uma comissão apócrifa que, com anuência do juiz substituto da 12ª Vara Federal de Belo Horizonte, Mário de Paula Franco Junior, tem ditado regras sobre o cadastro de atingidos e pagamentos de indenizações em frontal contradição com o TAC-Gov, o Termo de Ajustamento de Conduta homologado pelo mesmo juiz e vigente há quase três anos, que estabelece o protagonismo dos atingidos na governança das ações de reparação e compensação dos danos advindos do crime da Samarco/Vale-BHP, ocorrido em novembro de 2015.

Na prática, o MPF recorreu de decisão proferida pelo juiz substituto nos autos da ação civil pública que trata da tragédia do rompimento da barragem de Fundão, pedindo que o TRF 1 decrete a nulidade de todos os atos processuais praticados nos autos (1016742-66.2020.4.01.3800), preservando, porém, a continuidade do pagamento de indenizações aos atingidos do município de Baixo Guandu, poupando ainda mais danos às pessoas que foram equivocadamente induzidas a aceitar as ações conduzidas pela comissão e pelo citado juízo. 

No recurso, os procuradores da República que integram a Força-Tarefa Rio Doce relatam uma série de episódios esdrúxulos que marcam a atuação da comissão desde sua criação, chegando a utilizar de ironias para explicitar os aspectos mais exóticos do caso. 

Como é o caso da aprovação, pelo juiz substituto, do sigilo jurídico na tramitação da ação impetrada pela dita comissão. “É bom ressaltar que o efeito prático da decretação do sigilo foi impedir que a conduta da ‘Comissão de Atingidos’ fosse conhecida e fiscalizada justamente por aquelas pessoas que ela pretende representar. Quer dizer, os integrantes da ‘Comissão’ pretendem falar em nome de todas as pessoas de Baixo Guandu, mas o querem fazer de modo secreto, sem que essas pessoas possam conhecer aquilo que se faz, supostamente, em seu nome”, expõe o MPF no recurso. 

A decretação de sigilo se deu após alguns atingidos de Baixo Guandu tomarem conhecimento da criação da comissão e manifestarem interesse em conhecer o que estava sendo negociado e decidido. 

O MPF ressalta ainda a rapidez com que o juiz decretou o sigilo e os termos utilizado para tal. “Não se pode admitir que a justificativa para a decretação de sigilo seja feita com base em frases genéricas e agressivas, como se a decisão judicial fosse uma postagem em rede social: ‘grupelhos radicais’, ‘fake news’, ‘domínios e amarras’ são expressões que podem ser válidas em uma discussão no Twitter, mas não se prestam a embasar uma determinação séria, tal como a supressão do processo judicial do controle da crítica pública. Decisões secretas são absolutamente nulas e inconstitucionais”, criticaram os procuradores da Força-Tarefa.

Como o sigilo foi imposto até mesmo contra o próprio MPF, o órgão ministerial salienta ser este o fato mais grave da atuação do magistrado, visto que, segundo o Código de Processo Civil e a Lei da Ação Civil Pública, em casos que envolvem direitos coletivos, como o presente, a intimação prévia do MPF é obrigatória. A intimação só aconteceu no dia 15 de setembro, após a publicação da decisão judicial fixando a matriz de danos quando então o MPF pôde tomar ciência das petições e decisões proferidas nos autos, que até então tramitavam em sigilo. 

Fechamento do cadastro de atingidos

As primeiras movimentações da advogada citada nos autos, Richardeny Luiza Lemke Ott, da pseudo-comissão em Baixo Guandu, já haviam sido alvo de manifestações do MPF e também das Defensorias Públicas do Espírito Santo, Minas Gerais e da União (DPES, DPMG e DPU), quando ela e um grupo de atingidos se reuniram com o juiz Mário de Paula, em Belo Horizonte e, segundo relatos de uma das atingidas presentes, o juiz teria informado que a Fundação Renova só quer pagar as indenizações e a realização de novos acordos após o fechamento do cadastro dos atingidos

A falsa informação sobre necessidade de fechamento do cadastro foi imediatamente negada pelas Defensorias e Ministérios Públicos em nota pública, mas a advogada e o juiz prosseguiram envolvendo os atingidos em decisões totalmente avessas ao estabelecido no TAC-Gov. 

A formalização da dita Comissão de Atingidos de Baixo Guandu aconteceu em abril, quando nove atingidos do município registraram em cartório o agrupamento com fins jurídicos e, apenas seis dias depois, enviaram um e-mail à Secretaria do Juízo da 12ª Vara Federal com o protocolo de “petição inicial”, para tratar especificamente de indenizações aos atingidos daquela localidade. 

Rapidamente, descreve o MPF, “em apenas cinco dias, o juiz aceitou o pleito”, autorizando a comissão a “formular pretensão coletiva em nome e no interesse de todos os atingidos do município de Baixo Guandu/ES”. Essa, destaca o recurso, foi “a primeira irregularidade processual, pois o grupo de nove pessoas não possuía legitimidade para representar toda a coletividade de atingidos daquela localidade”, visto que, segundo o TAC-Gov, as comissões locais de atingidos “devem resultar de um processo de construção coletiva, que obrigatoriamente tem de ser acompanhado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos, entidade contratada especificamente para essa finalidade”.

‘Justiça possível’

Toda essa atuação judicial, alvo do pedido de nulidade pelos procuradores da Força-Tarefa, foi apresentada pelo magistrado Mário de Paula, em um programa da Justiça Federal transmitido pela plataforma de videoconferência da Justiça Federal no último dia 14 com o nome de rough justice, ou “Justiça possível”, em alusão a um procedimento previsto no direito americano, e como “um sucesso absoluto”, não só em Baixo Guandu, mas também em Linhares. 

Para o MPF, no entanto, a rough justice “é apenas um artifício retórico que pretende justificar aquilo que, de fato, se fez: a realização de presunções para fixação de valores completamente aleatórios e não justificados de indenização”, porque, “valendo-se da roupagem de ‘máxima da experiência’, o juiz substituto da 12ª Vara Federal deixou de realizar a adequada instrução probatória para verificação de circunstância que dependeria de análise pericial envolvendo o município de Baixo Guandu/ES (…). Com isso, presumiu, sem qualquer embasamento jurídico ou fático, quem seriam os atingidos pelo desastre”.

O recurso relata ainda o fato de os abaixo-assinados apresentados pela “comissão” serem visivelmente compostos por listas desorganizadas, sem especificação do número de signatários e com inúmeras assinaturas repetidas – “irregularidades, porém, não foram objeto de questionamento nem por parte das empresas rés, nem objeto de atenção do magistrado”.

E evidencia seis graves prejuízos aos atingidos, impostos pelo juiz na aprovação dos atos da comissão e de sua advogada, numa continuidade, portanto, da condução do caso de forma a nitidamente beneficiar as empresas autoras do crime, como foi o episódio de orientar pelo fechamento dos cadastros de atingidos. 

‘Quitação geral’ e outros prejuízos

O primeiro prejuízo é a obrigação de que o atingido deva solicitar sua indenização exclusivamente em uma plataforma online criada e disponibilizada no site da Fundação Renova. Em seguida, a exigência de constituir um advogado para acessar a indenização; a determinação do dia 31 de outubro como data final para a formulação de pedidos de indenização no site da Renova; o valor “irrisório” de R$ 10 mil a ser pago aos atingidos que solicitam indenização – equivalente ao valor atribuído pelos tribunais brasileiros a passageiros que tenham sofrido extravio de bagagem em voos comerciais”; e a exigência de que o atingido, para ter direito à indenização, assine termo de desistência/renúncia de eventuais pretensões indenizatórias formuladas em ações ajuizadas em países estrangeiros.

De acordo com o MPF, “a decisão recorrida, ao transferir para o atingido a responsabilidade de dar quitação definitiva e integral dos danos, desconsiderou completamente o fato de que, até o momento, ninguém, muito menos os próprios atingidos, tem conhecimento integral sobre a complexa teia dos danos causados pelo lançamento dos 44 milhões de metros cúbicos de rejeitos lançados sobre a Bacia do Rio Doce, os quais, frise-se, encontram-se agravados pelos danos causados pelo próprio processo reparatório em curso, já que os diagnósticos periciais dos danos, os quais vêm sendo produzidos com a concordância e pagamento das empresas poluidoras, e com a homologação do próprio juízo recorrido, ainda não foram finalizados”.

O recurso, porém, ressalva que, apesar das graves violações e ilegalidades, o TRF-1 deve manter as consequências práticas da decisão, ou seja, a continuidade do pagamento das indenizações aos atingidos, porém, considerando os valores atribuídos como piso mínimo (e não máximo) das reparações devidas pelas empresas causadoras dos danos individuais e coletivos, abstendo-se, também, de exigir assinatura de Termo de Quitação Integral e Definitiva, bem como de termo de desistência da ação, e tornando, igualmente, sem efeitos jurídicos, aqueles já assinados.

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